PAUL SETÚBAL – APROPRIAÇÃO, SANGUE, MÁSCARAS E VERBO
Por Divino Sobral, 2014
Nesta sua apresentação, Paul Setúbal reúne três séries de trabalhos selecionados em sua produção entre os anos 2012 e 2014, construindo um conjunto que proporciona a visão mais ampliada da pesquisa que vem realizando, mostrando relações entre obras que se afirmam essencialmente como desenhos e obras que transitam numa zona fronteiriça entre o desenho e a pintura, ora sobre a folha de papel ora sobre o tecido da tela.
Em seu processo criador, o artista opera por meio da formação de um arquivo de imagens extraídas do enorme banco de imagens criadas pela história da arte e pela indústria cultural, que circulam por meios impressos e pela internet. Assim, ele recupera imagens produzidas no passado para dar-lhes significados que dialogam com questões da atualidade, e coleta imagens do presente publicadas nos meios de comunicação de massa para nivela-las com as anteriores; destrói as hierarquias ortodoxas entre imagens de alta e de baixa culturas pelos processos de edição que desenvolve para composição dos seus trabalhos.
Uma sequência de procedimentos técnicos e conceituais empregados por Paul Setúbal, e que são estruturais em sua produção, estão presentes nos três trabalhos da série Revolution is my name apresentados na exposição: a apropriação de imagens; a subtração do contexto original e a fragmentação das imagens que seleciona; a mescla de imagens de distintas origens na mesma cena criando conexões simbólicas entre figuras do passado e do presente; o escorrimento da tinta bastante diluída que, apesar de roxo azulado, traz à mente o derramamento de sangue; as palavras escritas ora de maneira quase residual perdidas na folha de papel, ora escritas incisivamente com moldes; o uso da máscara como objeto conectada tanto à fantasia quanto à identidade política.
Paul Setúbal trata da ideia de revolução em culturas e tempos diferentes. É por isso que promove a convivência entre os fragmentos da ilustração de um cavaleiro medieval portando elmo e espada em atitude de luta, o desenho de uma forma que lembra uma parte de um carro de batalhão de choque, e outro com um grupo de mascarados portando armas em atitude de batalha, que parece ter sido coletada de um evento bem recente. Os escorrimentos da tinta sangram as imagens, lembrando que a História nos mostra que não houve e não há revolução sem o empunhar de armas e sem que sangue seja derramado. Aliás, as obras da série Revolution is my name fazem referência não só à história das revoluções em muitos tempos e lugares, mas também ao desejo de revolucionar as condições de vida expresso durante as manifestações civis desencadeadas no Brasil em junho de 2013, e que resultaram em intensa repressão dos aparelhos do Estado em confronto com setores da sociedade.
Em dois outros trabalhos Paul Setúbal substitui o uso da tinta pelo uso de seu próprio sangue. É inevitável que se faça conexão com sua pretérita experiência de tatuador (a tatuagem é um desenhar ferindo a pele e o sangue é natural ao seu processo) e que se pense em referências à body art, que levou as pesquisas artísticas aos limites do sangramento do corpo. Mas, diferentemente, o artista usa o sangue como matéria de desenho, fixa seu fluído vital sobre a superfície.
Ao modo do dripping do pintor americano Jackson Pollock (1912-1956), o trabalho Verbo por verbo é executado com sangue gotejado sobre toda a superfície do papel, ou diluído e aplicado em determinadas áreas com rápidas pinceladas. Do lado esquerdo da obra são desenhados um coração (órgão responsável pelo bombeamento do sangue), uma diminuta árvore e um ícone de tristeza, no modelo de emoctions que circulam nas redes sociais; no centro do trabalho, antecedendo ao texto do título, está desenhada também com sangue uma balança (que remete às ideias de justiça e de prestação de contas); do lado direito, uma pequena cruz (sinal do martírio cristão), uma arma de fogo (que fere e mata), uma foice (elemento associado à morte) e um emoctions de alegria; entre as gotas respingadas estão escritas pequenas palavras e frases em latim ou grego (rememorando palavras com os quais a língua portuguesa tem correspondentes próximos); entre esses elementos desenha um diagrama de linhas que estabelecem estranhas conexões entre as diferentes imagens, direcionando o olhar de uma lado ao outro do suporte.
Nos desenhos da série Constelações o artista usa também seu sangue e procede de maneira bastante semelhante à empregada nos trabalhos citados logo acima. As diferenças estão nos fatos de que os gotejamentos de sangue estão mais concentrados sobre determinadas áreas do papel e os desenhos emergem dessas acumulações de pontos, aglutinando um repertório diversificado de figuras: a arma de fogo, o canhão, a árvore, o braço de homem levantando um machado, uma pessoa enforcada e fragmentos vários de figuras humanas, representados com linhas tênues e delicadas. A vontade humana de ver figuras entre os pontos brilhantes na escuridão da noite criou a ideia das constelações, pontos de orientação ao navegante e pontos de fuga da imaginação e do devaneio.
Nos três desenhos da série Confessio, executados com lápis grafite sobre papel, Paul Setúbal representa a si mesmo (vestido apenas de calça jeans e descalço) em três situações, nas quais trava estranhas relações com máscaras presas à sua cabeça, que possuem características monstruosas como se exagerassem no acento de determinados aspectos da personalidade humana transformados em estereótipos, tais como o enorme chifre na testa, as orelhas agigantadas e o superlativo nariz, índices padronizados do traído, do emburrecido e do mentiroso. As máscaras que ocultam a identidade do autorretratado e o impedem de se reconhecer, parecem originárias de culturas antiguíssimas, são como objetos torturantes que ele tenta inutilmente arrancar de sua face, sem nada lograr.