Corpo Fechado - C Galeria, Rio de Janeiro, 2018
Um santuário deve ser mesmo a urgência do impossível
Daniela Name
Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje.
Itan das tradições orais de matriz africana
Nada é mais cortante e violento que a falta de memória. A ferida aberta jorra seus líquidos, seus cheiros podres de um lanho antigo, o sangue pisado por novos golpes. Mas a anestesia foi tanta, e tão torpe, que ainda há dormência. As consciências bocejam enquanto o corpo não sente. Cedo ou tarde ele vai doer, porque é o corpo que lembra; é o corpo que guarda. E será a dor que fará do corpo um levante, aquele que encarna as batalhas para purgar o infecto e enfrentar os vazios. Só o corpo que se sabe doente pode perseguir a cura; só a ferida que lateja um dia cicatriza: é deste ciclo de vida e de morte que se alimenta esta exposição de Paul Setúbal.
O que se deteriora não é apenas carne, é também território e nação. Amnésia e náusea, palavras desfraldadas como bandeiras. E é com palavras que se maldiz e se enfeitiça; é com palavras que se cria e se destrói todos os mundos. Nas bandeiras de Setúbal, as palavras tremulam, mas também repisam a si mesmas, já que seu vermelho oxidado é pigmento feito de sangue e de terra.
Sangue, terra e fogo. Este último elemento, presente no vídeo Duas horas e meia de fogo, completa uma espécie de trilogia que orienta Corpo fechado, primeira individual do artista goiano no Rio. Por meio do conjunto de trabalhos recentes apresentados na C. Galeria, Setúbal persegue novos assentamentos para o corpo a partir da paixão – tanto a da libido como a do sacrifício. Duas horas e meia de fogo enfrenta as duas possibilidades ao registrar a ação em que o artista incendiou um conjunto de trabalhos antigos. As imagens lambidas pelo fogo tanto podem ser destruídas quanto podem ser cozidas: o tacho de cobre, panela ancestral no centro do país, insinua a possibilidade de as cinzas das imagens como alimento. Se há uma espécie de purgatório nesta eliminação dos excessos, há também um gesto fronteiriço, entre o sedutor e o autoritário, na imolação das memórias pelas labaredas. O fogo, tão presente em trabalhos capitais para a história da arte do século 20 (Hélio Oiticica, Yves Klein, Cildo Meireles, Chris Burden); o fogo, manifestação mitológica de Tupã, Xangô e tantos outros deuses.
Setúbal não deixa de expor aqui as recordações de sua convivência com as benzedeiras do cerrado. Com banhos de ervas, passes magnéticos e palavras encantadas, elas atuavam na intenção de “fechar o corpo” daqueles que as consultavam, protegendo a alma, ou o que quer que possamos chamar com esse nome, das energias negativas. Mas o que tem o poder de imantar e resguardar a alma é a sua carcaça. É o corpo que se fecha, como uma casa que veda suas frestas.
E o que é que se percebe, no coração desta casa? Que nunca foi tão evidente, na trajetória do artista, a consciência serena com que enfrenta suas inquietudes e o despudor com que deixa vir à tona suas raízes caboclas, transformando uma brasilidade específica, voltada para o país que vem de dentro, em uma espécie de bússola para o imaginário e para a imagem. Se, por um lado, Setúbal vem redimensionando o legado como integrante do Grupo EmpreZa, no qual atua há anos como performer e pesquisador das pulsões do corpo, por outro é bastante claro que ele desgarra seu vocabulário rumo à construção de uma linguagem própria e singular. Ela faz do enfrentamento das violências uma jornada de iluminação. Se, no EmpreZa, o corpo dos artistas é o campo para a pesquisa e o enfrentamento dos limites, na obra de Setúbal o artista transpõe para variados suportes a ideia de um corpo em pedaços, que se reconstitui a partir de seus despojos e até mesmo dos restos de outros corpos.
Na série Armas para os deuses, Setúbal apresenta espadas, espadachins e adagas em bronze, arranjadas em estojos de madeira como se fossem objetos históricos. Elas exibem no lugar da lâmina a reprodução de folhas das plantas conhecidas como “Espada de São Jorge” e “Espada de Santa Bárbara”, associadas, respectivamente, a Ogum e Iansã, dois orixás guerreiros. As espadas revelam uma das vertentes da pesquisa de Setúbal em escultura, formalizada por uma canibalização de imagens de fontes distintas, frequentemente mixadas de uma maneira quase barroca. A construção de parte das espadas com plantas que são chamadas de “espadas” cria uma repetição que, em vez de ser redundância, se transforma em antítese da arma. As folhas de São Jorge e Santa Bárbara não podem ferir, não são espadas “de fato”, mas o poder narrativo e simbólico de Ogum e Iansã têm o poder de corte e de criação da fé, força que projeta o desejo e nutre o sujeito para a realização.
O corpo aos pedaços visto nas espadas reaparece na série A coroa do rei, em que Setúbal funde os moldes de mochadores aos dos chifres de bois, bodes e carneiros. Os mochadores são instrumentos usados na zona rural para cicatrizar as feridas abertas na cabeça dos animais quando seus chifres são arrancados, evitando que se machuquem uns aos outros em brigas – o que diminui, obviamente, o lucro de quem cria rebanho. Ao perder o chifre, o animal perde sua majestade e sua possibilidade maior de defesa e ataque. Nessas esculturas, aquilo que é roubado volta aglutinado ao instrumento cicatrizador. Há, nesse conjunto, uma poderosa noção de ciclo, com os chifres reinvestidos de poder a partir do mochador que cura, e agora serve ao chifre como um novo corpo, que tanto pode lembrar uma lança quanto uma foice – patrimônios camponeses de lida e de luta. O chifre como arma e como chamado: o chofar dos judeus, o berrante dos caipiras – guerra e comunicação.
Nos rituais ameríndios, as trincheiras do corpo são evocadas pelo tatu, animal xamânico sagrado, símbolo da proteção dos limites da matéria e do pensamento. Ele tem sua armadura no próprio casco, fechando-se em bola quando o perigo chega. Enxerga mal, mas cava fundo, e por isso é visto como um mensageiro que liga a superfície às profundezas, a terra ao fogo turbulento que ainda se movimenta em suas entranhas. Em Corpo fechado, o conjunto escultórico Compensação por excesso fala deste corpo-armadura, que marca com dentadas e com o molde negativo do rosto esse outro corpo violento, fálico e policialesco dos cassetetes. O humano que resiste também enfraquece a arma que tenta eliminá-lo.
Com esse conjunto, chegamos à outra característica importante da pesquisa de Setúbal na escultura: a fronteira entre o tridimensional e a gravura, especificamente a monotipia, que gera no volume do corpo uma espécie de refluxo. Uma escultura em bronze, como cada um dos cassetetes, é feita a partir de um molde, preenchido com o metal derretido e efervescente. O rosto, a mão ou as dentadas do artista gravadas em cada um desses objetos agressores são como um segundo molde, que grava com identidade um processo que regularmente seria independente de qualquer vestígio manual, mas que o artista faz questão de marcar com os índices de seu próprio corpo.
Resistir também é criar sulcos, alimentar fantasmas – e isso fica ainda mais claro em O vazio está cheio de mim, em que Setúbal funde o espaço oco de seu punho cerrado. Formalmente, tanto nessa peça quanto em Sudário, é como se o artista virasse a escultura do avesso, evidenciando-a como corpo, privilegiando suas estranhas informes. Em O vazio está cheio de mim temos, no campo simbólico, a ideia de um murro em colapso, golpe que não se concretiza porque a violência, em vez de ser desferida na direção do outro, para o lado de fora, acaba explodindo e sendo desarmada no lado de dentro.
Esse conjunto de trabalhos se completa com o vídeo Porque os joelhos dobram, que registra a ação em que Setúbal golpeia com um cassetete de borracha um ambiente de paredes brancas e nuas – alusão evidente a um espaço expositivo. Ele bate, bate e bate, insistentemente. Até que cansa, porque o próprio porrete entortou, dobrando-se à resistência do espaço. O paradoxo entre resistência e exaustão, tão presente na história da performance, reaparece aqui revisitado.
A relação antitética entre as partes constitutivas de um mesmo corpo marca as peças da série Divisor, realizadas a partir de mourões, estacas que sustentam as cercas em uma fazenda. Símbolos da demarcação da terra, da propriedade privada e da interdição do espaço àqueles que teoricamente não têm sua posse, os mourões de Divisor são marcos marcados pela ação de Setúbal. Ele inseriu chifres e dentes de ouro na madeira, vestígios de resistência e fortuna.
Os dentes banhados em ouro aparecem ainda em Ascensão e queda, âncora do segmento final da exposição, fortemente ligado à noção de purgatório. Não aquele cristão, mas o presente nas religiões de matriz africana ou indígena, sempre ligado a uma ideia de iniciação. É preciso perder algo para se elevar, a exemplo do que ocorre com a carta do Enforcado, no tarô clássico de Marselha: um homem que, talvez voluntariamente, está amarrado por uma das pernas, de cabeça para baixo, enquanto moedas caem de seus bolsos. O arquétipo do Enforcado não fenece por asfixia, ele apenas perde os excessos e fica mais leve, para que possa experimentar de modo mais pleno a transformação sugerida pela carta seguinte: a da Morte, que jamais será o fim da jornada para o herói do tarô. Ele ainda passará por nove cartas até chegar à última do baralho (ou primeira).
No campo da imagem, os dentes de ouro de Ascensão e queda evocam um arco de tempos históricos muito distintos, do extermínio de judeus nos campos de concentração ao douramento dos dentes pelos negros forros, que exibiam na boca e nas joias a ostentação orgulhosa de sua liberdade. O ouro de Midas, rei ambicioso que morreu de fome e de sede depois de transformar tudo à sua volta em metal brilhante. O ouro da meta utópica dos alquimistas, em busca da pedra filosofal. O ouro dos bandeirantes, heróis e vilões do Brasil Central. O ouro da Idade Média, da Rússia, de Klimt, metal cujo brilho faz as superfícies dançarem, refletindo o além de si. Ouro de Oxum, fertilidade e riqueza, mas também de Omolu. Filho rejeitado de Nanã, o bebê abandonado no mar tem o corpo ferido por peixes e caranguejos, e das feridas cicatrizadas pelo sal e pelo amor de Iemanjá surge um orixá que cuida dos ciclos da terra e de suas profundezas ígneas, afogueadas.
Omulu, símbolo máximo daquilo que morre para renascer mais forte, brilha tanto que precisa se manifestar coberto por palha, para que sua luz não cegue quem o olha. As narrativas sobre o orixá se confundem parcialmente com as de Hefesto ou Vulcano, mito greco-romano que vive nos umbrais da terra e tem ainda parentescos com dois outros orixás: o mensageiro Exu e o ferreiro Ogum. Omulu e seus ciclos de vida e morte vêm sendo um interesse para a pesquisa de Setúbal, que evidencia isso no díptico A queda e o voo. Eles recriam em bronze parte do umbigo do artista quando recém-nascido e o casulo de uma lagarta que não conseguiu reviver como borboleta. A bandeira Vermelho n° 1 encerra as voltas de vida e morte lembrando o corpo e o sangue de Cristo compartilhados em comunhão. O corpo transmutado como elemento reunificador – religare, religião.
A reintegração que se dá no corpo também pode acontecer pelo território ou pela memória. Percebe-se isso em Alvorada, instalação sonora que abre e encerra Corpo fechado. Enquanto se agacha, para tentar ouvir a voz do artista narrando uma história, o observador pode ler, nos sacos de cimento Alvorada, o slogan da marca: “Desde 1968 no coração de quem constrói”. A especulação imobiliária, desenfreada na capital federal a partir da ditadura militar, tem tudo a ver com o que Setúbal está contando. Ele narra a jornada à procura do Santuário dos Pajés, solo sagrado para diversas etnias indígenas, para onde se dirigia para participar de um ritual. Mas enfrenta percalços como a falta de sinalização, parte das dificuldades impostas pelos grileiros que querem isolar aquelas terras para tomar posse delas.
“Um santuário deve ser mesmo a urgência do impossível”, diz Setúbal em determinado trecho da história. É preciso fazer silêncio para fazer ressoar essa frase, eixo de Alvorada e de toda a exposição. Quem sabe essas palavras encantem e cicatrizem o corpo ferido de um país sem alma.