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Monumental - Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, 2022

A impermanência da imagem e da memória

 

Entende-se monumento como um objeto cuja função é imortalizar a história e a memória, evocando o passado, perpetuando uma recordação para gerações futuras – seja ela de uma pessoa ou de um acontecimento. Por esta razão, é da natureza do monumento ser perene. No entanto, esse objeto é apenas um meio – uma mídia – que porta uma imagem. E, embora essa mídia seja projetada para ter longa durabilidade e, assim, cumprir sua função de eternizar uma recordação, permanecendo praticamente inalterada (exceto pela ação da natureza, como a oxidação, no caso das esculturas em bronze), a imagem que ela carrega atravessa os tempos sofrendo mutações, ganhando novas camadas de significação.

Logo, aquilo que vemos de imediato, a materialidade (uma escultura em pedra ou bronze, por exemplo) é apenas a pele de uma imagem cujo ser é mutável. Para citar um exemplo próximo de nós, o “Monumento às Bandeiras", esculpido pelo artista Victor Brecheret e inaugurado em São Paulo em 1953, permanece  inalterado em sua materialidade desde então. Mas a imagem dos Bandeirantes, ou, para usar outras palavras, sua presença no imaginário coletivo ganhou novos significados, pois hoje debate-se com maior clareza a natureza violenta de suas expedições no território paulista. O que foi projetado como uma imagem do progresso, hoje já é compreendido (certamente não por toda, mas pelo menos por uma fração da população brasileira) como uma imagem da violência e como símbolo do colonialismo, e, por isso, é alvo de ataques. Ao se destruir ou atacar um monumento, o que se quer atingir é o imaginário coletivo. Interdita-se a imagem evocada pelo corpo virtual do monumento, tomado como substituto no mundo visível daquele corpo ou daquele acontecimento que não mais é presente.

Tomamos o monumento como a presença de uma ausência. O ato de destruir monumentos, compreendendo-os como imagens de poder, existe desde as civilizações mais antigas. No momento atual ele é influenciado pela presença da ideia de decolonialidade nas reflexões sobre imagens. É nesse espírito que se insere a exposição “Monumental", de Paul Setúbal, no Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea. A principal peça da exposição é um contramonumento que evoca o primeiro imperador do Brasil, D. Pedro I, inspirado em duas imagens já existentes e de forte presença no imaginário coletivo brasileiro: a pintura “Independência ou Morte" (ou “Grito do Ipiranga"), realizada por Pedro Américo em 1888, e a "Estátua Equestre de D. Pedro I" projetada por João Maximiano Mafra e executada por Louis Rochet, inaugurada em 1862 na hoje nomeada Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro. Ambas as peças foram produzidas durante o Segundo Reinado, de D. Pedro II, marcado pela atuação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Imperial de Belas Artes na formação da identidade nacional e da cultura visual brasileira.

A pintura de Américo nos é apresentada nos livros escolares de História como ilustração da proclamação da Independência do Brasil. Desde sua produção, ela adquiriu grau de oficialidade. Mas sabemos que toda história, assim como toda imagem da história, é uma construção. O que vemos na pintura é a invenção da independência por Pedro Américo. Nela D. Pedro I é idealizado em sua virilidade, como um herói sobre um majestoso cavalo, como é de praxe na representação de imperadores desde Roma até Napoleão, cujas imagens parecem ecoar na composição de Américo (basta conferir a obra de Jean-Louis Ernest Meissonier, “Batalha de Friedland", de 1875, por exemplo). Ao seu redor encontram- se sua Guarda Real e a representação típica de um “caipira”, recorrente nas pinturas daquele momento, que parece assistir à cena com espanto ou admiração. Todos os coadjuvantes direcionam nosso olhar para o herói ao centro.

Em um texto da época intitulado “O Brado do Ypiranga ou a Proclamação da Independência do Brasil”, já se adiantando às críticas, Américo assumia que “a realidade inspira, e não escraviza o pintor”. O artista não considerava conveniente representar o imperador sobre um burro (animal sobre o qual ele de fato montava naquela ocasião) ou se referir ao seu “incômodo gástrico”, como é citado no texto, pois feria sua dignidade. Já o “Monumento Equestre de D. Pedro I" participa do auge do Romantismo Indianista no Brasil. O primeiro monumento público brasileiro foi fruto de um edital que almejava erguer uma escultura para celebrar a primeira constituição do Brasil, de 1824 – que, no conjunto escultórico, aparece na mão erguida de D. Pedro I. A imagem do imperador, aqui também sobre um majestoso cavalo, é cercada por indígenas que representam quatro rios brasileiros (Amazonas, Madeira, Paraná e São Francisco), além de animais da nossa fauna. Sua posição é estratégica e participa da construção de seu significado: a imagem dirige-se à Rua Imperatriz Leopoldina, primeira esposa de D. Pedro I, onde situava-se, na outra extremidade, o portão principal da Academia Imperial e Belas Artes, instituição responsável por participar/ contribuir para a formação do imaginário nacional. À direita do monumento encontra-se a rua Sete de Setembro, data da proclamação da independência, que conecta a Praça Tiradentes (naquele momento chamada de Praça da Constituição) ao antigo Largo do Paço, onde se localizava a sede do governo.

Apresentadas as referências, podemos voltar a atenção ao contramonumento de Setúbal e destacar alguns aspectos. O primeiro ponto é a construção visual de D. Pedro I e seu posicionamento. A imagem parece executar uma fusão do monumento equestre com a pintura de Américo. A mídia utilizada simula a aparência da escultura em bronze, mas o personagem que vemos é o da pintura, que, em vez de segurar a Carta da Constituição, ergue uma espada. Setúbal, no entanto, o coloca de ponta-cabeça. A espada conecta-se ao pedestal e, ao topo, vemos as patas do cavalo. O artista revira a construção narrativa e imagética, explicitando o teor ideológico e ficcional que existe em qualquer imagem. Reimaginar D. Pedro I, cuja presença já é impregnada na cultura visual brasileira por meio de suas representações “oficiais”, faz parte do processo de construção de outras realidades. Citando o filósofo Jacques Rancière, “o real precisa ser ficcionado para ser pensado”¹ – atitude que revoga a linha divisória aristotélica entre duas histórias: a dos historiadores e a dos poetas. Indo mais além, Setúbal rompe com um dos princípios fundamentais do monumento: a perenidade. A duração da escultura, a partir da abertura da exposição, foi de uma hora. A imagem foi testemunhada apenas pelas pessoas presentes naquele dia e horário e, logo depois, foi destruída pelo artista em um ritual que contou com a participação do público.

O corpo artificial de D. Pedro e de seu cavalo foram derrubados e, em seguida, “esquartejados”. As peças foram doadas ao Atelier Gaia² para serem reaproveitadas, transformadas em sua materialidade e ressignificadas. Efemeridade e imaginação histórica – em contraponto à noção de fato histórico – singularizam o trabalho de Paul Setúbal diante das imagens de memória tradicionais. A fragilidade da escultura derrubada e destruída sem muito esforço físico espelha a fraqueza da nossa própria memória como nação, o rápido esquecimento do passado, seja ele recente ou mais remoto. Não por acaso, ao finalizar o rito de destruição, Setúbal ergueu sobre o salão de entrada do espaço expositivo uma de suas bandeiras com a palavra “Amnésia” gravada com terra vermelha. A monumentalidade em discussão na exposição encontra-se também nos diálogos estabelecidos entre a obra de Paul Setúbal e a de Arthur Bispo do Rosario. Sua presença mais direta pode ser encontrada em um conjunto de três peças da série “Placas de Rua" de Bispo. As placas que identificam logradouros, muitas vezes batizadas com nomes próprios de personagens históricos, datas ou acontecimentos, podem ser consideradas espécies de monumentos menores³.

O conjunto de “Placas de Rua" presente em “Monumental" integra-se com facilidade ao universo imagético evocado por Setúbal: Rua 1º de Março, Praça da República e Rua Frei Caneca. A Rua 1º de Março, anteriormente chamada Rua Direita, recebeu o nome atual em homenagem à última batalha da Guerra do Paraguai, que marcou o Segundo Reinado e seu declínio. A Praça da República, anteriormente chamada Praça da Aclamação, foi o local de realização da cerimônia de aclamação D. Pedro I como Imperador do Brasil em 1822, além de ser o lugar para onde seria destinada a primeira ideia para a "Estátua Equestre de D. Pedro I", promovida em 1825 na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, mas não executada⁴. A Rua Frei Caneca se refere ao rebelde religioso que fez parte da Revolução Pernambucana de 1817, que, durante 75 dias, tornou o estado de Pernambuco um país independente, além de ter integrado a Confederação do Equador, revolta de caráter republicano conflagrada a partir da insatisfação com a Constituição de 1824, a mesma celebrada na "Estátua Equestre de D. Pedro I".

Em Bispo o que está em jogo também é a memória, nesse caso a das ruas que percorreu antes de se trancar em sua cela na Colônia Juliano Moreira e bordar suas placas e outros objetos com linha extraída dos uniformes dos internos do manicômio. Memórias de nomes de logradouros significativos para ele e para a história do Brasil.

Ao mesmo tempo que as placas tradicionalmente encontradas nas ruas carregam uma condição monumental, na medida que visam a perpetuar a recordação de personagens e acontecimentos, elas possuem também a função prática de sinalizar, situar as pessoas em um lugar ou dar direcionamento para onde seguir. Função essa que se perde nas placas bordadas por Bispo, tornando- se de fato monumentos a esses lugares – sim, aos lugares, e não aos acontecimentos ou personagens que os nomeiam. Talvez não fossem muito significativas para Bispo do Rosario a Guerra do Paraguai ou a Confederação do Equador, mas sim as memórias daquelas ruas inscritas em seu corpo. Ao lado dos trabalhos de Paul Setúbal essas placas são ressignificadas. Ativam memórias não só de ruas, mas de acontecimentos e personagens históricos. Tornam-se parte de uma narrativa construída a partir do contato de dois criadores de gerações distintas, mas que partilham interesses imagéticos similares: as noções de masculinidade, heroísmo e violência.

“Monumental" evoca a impermanência da imagem e da memória, mas também a persistência de estruturas enferrujadas: bases patriarcais, violência e autoritarismo. Fissuras do projeto de modernidade são expostas em meio às comemorações do Bicentenário da Independência e do Centenário da Semana de Arte Moderna – datas que têm seu sentido revirado e reconstruído em exercícios incessantes de reimaginação.

Thiago Fernandes

1 RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXOexperimental; Editora 34, 2005.
2 O Atelier Gaia é um coletivo integrado ao Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea composto por artistas que tiveram no seu percurso de vida a passagem pelo serviço de saúde mental da Colônia Juliano Moreira.
3 Aqui me aproprio do conceito cunhado pela professora Tatiana da Costa Martins, da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em uma comunicação apresentada em novembro de 2022 no 42º Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, intitulada “Fragmentos para o futuro: artes visuais e musealização a partir do Museu das Remoções”, ainda não publicada em formato de artigo. O conceito de “monumento menor” foi utilizado para abordar as "Placas de Rua"(de valor simbólico, não funcional) em homenagem a Marielle Franco, vereadora eleita pelo Rio de Janeiro e brutalmente assassinada em 2018.

4 O historiador Paulo Knauss conta que o arquiteto Grandjean de Montigny chegou a preparar dois projetos de padrão neoclássico, mas as mudanças políticas da época, que levaram à impopularidade do imperador e sua abdicação, em 1831, acabaram por inviabilizar o projeto. KNAUSS, Paulo. A festa da imagem: a afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. 5, n. 4, out./dez. 2010.4 O historiador Paulo Knauss conta que o arquiteto Grandjean de Montigny chegou a preparar dois projetos de padrão neoclássico, mas as mudanças políticas da época, que levaram à impopularidade do imperador e sua abdicação, em 1831, acabaram por inviabilizar o projeto. KNAUSS, Paulo. A festa da imagem: a afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. 5, n. 4, out./dez. 2010.

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