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Monumental - Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, 2022

Paul, Bispo e as coisas

​“um acervo de um complexo de alusões e repertórios de estímulo e de argumentos,

traduzindo certa geografia do corpo: o corpo pólis, o corpo das temporalidades [...],

o corpo testemunha e de registros”
Leda Maria Martins

“Monumental" conformou uma exposição que tem sua gênese e interlocução abraçada pela poética e pela prática do artista goiano Paul Setúbal, e foi gentilmente hospedada no Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea, situado no Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, espaço conhecido também como Colônia, localizado na Taquara, Zona Oeste do Rio de Janeiro.

A proposta conceitual evidenciou diálogos e costuras com o bicentenário da independência, a efeméride, que nos convocou ao desafio de revirar essa marca na história, com e a partir da contundente produção de Paul - rica em léxico e porosa frente às questões que se abrem ao tema, e, como perspectiva, fica perceptível seus encaminhamentos, no que concerne revisar a lógica autoritária, de progresso, de poder e violência estrutural.

Com isso, curadoria e artista no processo construíram ideias e arranjos consistentes para o sentido de monumento no projeto, e também a partir de rumos e situações já estabelecidas para tal, apostamos nas colaborações. Assentar a exposição no Museu de Bispo do Rosario, configurou encruzilhada e encontro entre os artistas, e de algum modo marca o aprofundamento dessa aproximação, quase ‘impossível’ de não ser assumida, pois já estava fadada aos mistérios e as relações ainda em descobertas de Paul com o artista-anfitrião.

O desenho da exposição, então, ia se delineando ao passo que desembrulhávamos os arquivos, imagens e a reserva técnica com reverência à produção de Bispo, permeada de sentidos, contaminações e lastros adensados no acervo do museu. que se abriu abundante às confluências e leituras entre as poéticas, e percepções outras de monumental no presente.

Entre flertes e envolvimentos, começamos a descortinar os elos e dinâmicas visuais nada triviais, porém muito curiosas entre os artistas, denotadas de mistérios e peculiares inscrições, espelhadas diante da arquitetura, do tempo, do espaço e de todas as camadas históricas e contemporâneas que escorrem pelas materialidades e semânticas que os trabalhos tocam e nos situam.

Rever a história e os sentidos de independência a partir do encontro entre os trabalhos de Bispo do Rosario, que teve sua produção concentrada em um hospital psiquiátrico, com materiais improvisados e sem nenhuma pretensão naquele tempo de fazer arte. Nos usos de objetos ordinários, como canecas, pentes, colheres, entre uma variedade de objetos. A sutileza com que Bispo nos captura para seu terreiro criativo ilumina suas potências plásticas na forma dos mantos, bordados e nas miniaturas de utensílios recriados.
Releituras vivas de uma condição humana coreografada pelas temporalidades de sua eminência e sequencialidade, nas sutilezas de seus questionamentos e nas advertências do que está por vir.

Se, por um lado, o Bispo do Rosario deseja nos apresentar o mundo, Paul Setúbal nos coloca a interpelá-lo. Vias distintas de traços dissemelhantes, que sobressaltam as lacunas de nossa construção simbólica, histórica e racional. Refletindo poéticas que partem do âmago de suas vivências, performam e performaram como ˜corpo--telas˜ suas práticas diante das materialidades, e como perspectiva a construção de sentidos, conceitos e sua operação no tempo. Em “Monumental" o tempo é espiral, no passo que conformou produções contemporâneas de tempos e dilatações diferentes. Nas releituras dos objetos, criações do novo, implicações presentes e latentes ao alcance de uma discussão que se dilui em manifestações visuais contundentes, explícitas e interpretadas por nós, nas variações daquilo que nos chega, e bem como nas semelhanças para onde os trabalhos apontam.

A força do encontro nos toma, nos desestabiliza e nos deixa sintomáticos, por sua força estética, e pelas notáveis interrogações, densidades e partilhas implicadas, que nos elucidam para as questões reveladas nas fúrias das palavras, nos símbolos, signos, materialidades, nas bandeiras, nos objetos ordinários, que nos posicionam diante de uma produção estética enviesada por críticas, metáforas e ruminações de futuro.
O corpo negro, pobre, louco, ex-marinheiro, asilado de Bispo do Rosario, impregnado de estigmas que espelham a ainda existente marginalização social – torna possível, por entre suas múltiplas inteligências e as muitas interfaces que compõem sua obra subverter, ressignificar e revelar outros possíveis modos de leitura e interação no mundo.

A contribuição de Bispo está relacionada à sua vida, que traduz sua obra e dá horizonte para sua missão, espelhada em sua produção, entre as diversas contaminações plásticas, tendo elaborado suas inquietações por meio do bordado, do relato, na transformação dos seus mundos e vozes internas na insistente noção de superação do tempo. Tempo este que rebate em nós.

Pelo encanto, Paul Setúbal, nos convida à rebeldia. Mesmo que Pelas belezas do bronze, do ouro e do sangue, o artista tensiona as estruturas do agora, esse tempo oco, vazio de sentido, nos conduzindo pelos seus trabalhos aos debates contemporâneos, pautados nos elementos que desconstroem uma performatividade de poder e suas violências nas disputas cotidianas.

É sempre como o gesto de escavar, fissurar, distender o mundo, e se infiltrar no pensamento, como aquilo que estruturalmente se percebe, torna-se então simbólico e político pensar modos de reparos, operações para a possibilidade de resolução dos problemas, angústias e precariedades desse tempo.

A destemida força de Paul, de sua pesquisa e produção, desdobramentos sociopolíticos nas iconografias se adensa e nos serve como quebra, na perspectiva em que seu trabalho se coloca palpável e resoluto materialmente, bem como seus gestos trilhando desconstrução e subversão da dimensão de triunfo. É político, é atraente, tem densidade e alquimia.

Pelos adornos, contrastes, cirúrgicos estudos, Paul respeita e dialoga com diferentes escalas, conceitos, e também com a memória. Banha e azeita nossas revoluções internas. Os trabalhos refletem os desejos de construção de futuros menos fragilizados, e nos poupa de deslumbres ou mesmo de enganosos discursos consensuais. Aspira configurações exigentes de uma nova dimensão de poder, nos colocando, enquanto espectadores, dentro da obra e munidos diante da batalha, da guerra.

Penso que em “Monumental" tanto Bispo quanto Paul nos revestem para um tempo que, obviamente, não profetiza a glória, mas sim, a revolução cotidiana, na qual embarcamos todos os dias, em cada despertar de nossos olhos, em cada profundo suspiro, a cada tomada de consciência corporal que nos ergue sobre o chão que pisamos. Todas as nossas lutas, desejos, ficções se põem diante de nós, contextualizadas pelo tempo presente fundamentadas no passado e apontando para futuros.

As alegorias presentes nos trabalhos se colocam a serviço daquilo que podemos elucidar, como caminhos para uma compreensão ampla dos problemas, no mesmo passo que sugerem generosamente pistas de como questionar e reelaborar o pensamento, os posicionamentos e discernir alianças.

A profundeza do encontro se mistura por entre as geografias, o espaço, as pessoas, as coisas e nas negociações das obras, avizinhando bandeiras e seus anúncios; armas, farda e capacete; placas de rua, deslocando interpretações de pódio, trono e o lugar do herói, ao dispor ouroboros entre mochadores. Detalhes e estranhezas que se podem notar nas referências visuais, temporalidades, materiais, escalas, ferramentas que orientam, conformam e dão sentido às nossas distintilidades, subjetividades e experiências frente aos desafios ordinários e/ou universais, e pelos quais se colocam diante de nós insistentemente.

Jean Carlos Azuos

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