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Monumental - Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, 2022

O giro do monumental


“Preciso voltar para o texto”.
 

Disse isso não para os meus botões, a roupa não tinha nenhum. Talvez tenha começado uma conversa com o zíper do velho casaco. Ele esperava comigo o voo que nos levaria de volta para casa depois de um Ano Novo em férias. “Mas é possível simplesmente voltar?”, perguntei ainda, enquanto serpenteava pela cauda-passarela que me levaria ao avião. Tinha o “Ouroboros”, de Paul Setúbal, girando na cabeça.

Para fazer a escultura de parede, um círculo fundido em bronze com polimento dourado, o artista sampleou o dragão¹ que está no chapéu da guarda imperial e também nos cetros monárquicos de Pedro I e Pedro II. O animal mítico é uma imagem oriunda das lendas do Norte de Portugal, e, na iconografia dos Bragança, sempre representou o monstro da diferença, adversário a ser domesticado com as mãos e com a cabeça. Em “Ouroboros”, Paul Setúbal o transforma na criatura que transmuta a própria existência ao engolir o rabo, roçando o futuro apenas depois de reavaliar o passado. Ou reescrevendo o passado a partir do futuro, tal qual Sankofa, o pássaro africano que olha para trás enquanto voa na direção do infinito.

O dragão alquímico imaginado pelo artista se liberta dos uniformes e símbolos dinásticos e, por tabela, de uma imensa carga imagética presente em outras histórias. Não morre pela astúcia de um cavaleiro português, tampouco pela lança de São Jorge. Está mais próximo daquele que, nas narrativas budistas, quebra a maldição que o transformou em carpa, subindo o rio contra a corrente para atingir a montanha. Ou de um outro, o dos mitos dos povos originários americanos, que é enganado pelo coiote, ganha a forma de uma libélula e precisa lembrar para sempre deque segue tendo a força mágica de um dragão². Girando enquanto engole a si mesmo, “Ouroboros” é ainda a cobra da Kundalini indiana, que explode em libido e impulso criativo enquanto avança, em espiral e em fluxo infinito, sem jamais retornar aos pontos onde já passou.


Será mesmo que é preciso voltar?


Entro no avião, ajusto o cinto de segurança e me preparo para esvaziar a cabeça nas nuvens. Mas a pequena tela instalada em frente à minha poltrona sintoniza pesadelos.

“É a Constituição de 1988 na mão desse bárbaro”, digo para meu companheiro de viagem, enquanto constato a destruição do coração de Brasília pela horda verde-e-amarela. Dessa vez os comentaristas do canal para assinantes não conseguem amenizar: o ódio dos totalitários vai transformando a cidade-monumento em ruína, e o 8 de janeiro de 2023 marcando o dia de um golpe de Estado frustrado no governo democrático que havia tomado posse apenas sete dias antes³.
Toda essa zona de turbulência, caramba, e o lanchinho do voo demorando a chegar. Então eu me distraio do pânico pensando em Dom Pedro I. Também há uma Constituição, a de 1832, na mão daquele bárbaro. No monumento carioca em sua homenagem⁴, financiado pelo filho que o sucedeu, o imperador-invasor empina seu cavalo e agarra as leis que forjou para pisotear com mais força em homens e mulheres de variadas nações indígenas e nas principais bacias hidrográficas brasileiras, que estão representados na base da escultura. Um poder usurpador esmagando os verdadeiros donos da terra e seus mananciais de riquezas.

 

“Perdeu, Mané”.


A telinha mostra agora a pichação na escultura da “Justiça” (1961), de Alfredo Ceschiatti, instalada em frente ao Supremo Tribunal Federal. A seguir, vejo os vândalos mutilando obras de arte nos corredores do Palácio do Planalto - Di Cavalcanti, Krajcberg, Athos Bulcão, o relógio doado pela França a Dom João VI, o pai de Pedro, monarca que resolveu fugir para a maior colônia portuguesa e fez parte dos moradores se sentirem “amigos do rei”. Muitos manifestam até hoje certa saudade da Corte quando perguntam “Você sabe com quem está falando?”.

(Lembro de como a terra vermelha de Brasília insiste em tingir as paredes brancas dos prédios oficiais, fazendo com que se gaste fortunas com a manutenção da pintura. É uma vingança da natureza sobre o modernismo bandeirante, sobre vanguarda utópica violentamente esculpida no território indígena. Mas esses bárbaros que vejo na tela do avião quebrando as vidraças de Oscar Niemeyer não são, obviamente, a revanche do cerrado, e sim uma atualização contemporânea de Anhanguera e seu grupo de assassinos e violadores.)
A multidão que depreda o patrimônio público é formada pela cristalização e o estiramento do que Sérgio Buarque de Holanda definiu como “homem cordial”⁵, sem que haja nenhum resquício de elogio do autor ao cunhar o termo. Este é o tipo que, desde o Brasil Colônia, procura fazer da esfera pública uma extensão de sua vida doméstica. O “homem cordial” emprega familiares, usa o Estado para beneficiar agregados e trata os bens comuns como propriedade privada.
Ao longo da história brasileira e até a contemporaneidade, criou raízes em uma elite branca que, muito recentemente, teve seu narcisismo ferido pelo desejo popular de justiça. Ao analisar a ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos em “Como as democracias morrem”, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt reconhecem que, apesar de ser o melhor regime que o chamado Ocidente conseguiu formular, a democracia tem existido nas Américas sem conseguir resolver o racismo estrutural e a exclusão social. “Não há nada (...) em nossa cultura que nos imunize contra colapsos democráticos”, escrevem os autores. “Hoje, é preciso fazer essas normas funcionarem numa era de igualdade racial e diversidade étnica sem precedentes”.⁶

Em seu importante ensaio sobre o autoritarismo brasileiro, Lilia Schwarcz destaca que a longa convivência de nossa sociedade com a escravidão e com os latifúndios privados preservou, até os dias atuais, uma espécie de “ritual nacional”⁷ de intolerância e de preservação das distâncias sociais. Daqui a alguns anos, a invasão de Brasília em 8 de janeiro de 2023 talvez possa ser entendida como um espasmo de desespero do “homem cordial”. A eleição de Jair Bolsonaro em 2018, e os quatro anos de destruição que se seguiram a isso já seriam uma convulsão dessa elite, que se sentiu ameaçada pelas conquistas - insuficientes, mas inegáveis - das lutas por igualdade racial, étnica, de gênero e de orientação e identidades sexuais.⁸
De volta a “Raízes do Brasil”, Buarque de Holanda lembra que o modo excludente de agir do “homem cordial” vem de um profundo vazio. Orientado por seus privilégios, ele não perfaz uma trajetória construída por si mesmo e acaba vivendo através dos outros, precisamente projetando nas escolhas dos outros o seu desamor próprio e o íntimo reconhecimento da sua falta de projeto. “Vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro”⁹, aponta Nietzsche.

 

Quem perdeu então, manés?


Paul Setúbal tem formulado essa pergunta ao longo de toda a sua trajetória, ao elaborar uma obra que é atravessada pela violência e pelos signos de um patriarcado atávico. Em “Monumental”, essa simbologia masculina - que o artista fissura e reinventa em armas, uniformes e bandeiras - é posta em diálogo com a obra de Arthur Bispo do Rosario (1909-1989). O artista sergipano, ex-marinheiro e ex-pugilista, foi diagnosticado como esquizofrênico e passou cinco décadas internado no prédio onde hoje funciona o museu que leva o seu nome, e que um dia foi o hospital psiquiátrico da Colônia Juliano Moreira.
Ao levar a obra de Setúbal para visitar o acervo, a história e o território de Bispo, a exposição procura iluminar um caminho comum: mais do que representar e questionar a masculinidade dominante da sociedade brasileira, os artistas realizam, em suas obras, uma espécie de transmutação. Se Bispo imagina fardões bordados à mão e tacapes feitos de pano, Setúbal cria armas reluzentes moldadas a partir de uma sobreposição de imagens: punhos de adagas de brinquedo, lâminas que reproduzem folhas das plantas conhecidas como “Espada de São Jorge” e “Espada de Santa Bárbara”. Associadas, respectivamente, aos orixás guerreiros Ogum e Iansã, as plantas são usadas pelas religiões de matrizes africanas como vetores de proteção e de cura.

Fazer daquilo que fere, a saúde; bordar as próprias cicatrizes. Esta é uma das encruzilhadas em que esses dois artistas podem se abraçar - a do encantamento dos objetos a partir da ficção, para que a imaginação do mundo possa redimi-los. Na curadoria tríplice que assino com Jean Carlos Azuos e Thiago Fernandes, um de meus gatilhos sensíveis para o entendimento do que estávamos propondo vem de um trabalho de Bispo. Um pequeno “Pódio” feito de cotocos madeira, sem data, que marca a posição dos competidores (1, 2 e 3), mas está completamente vazio. Pode haver disputa, mas não há prêmios, o que iguala vencedores e vencidos e demonstra a inutilidade da rinha. Creio ser bastante sintomático que essa representação, a do pódio vazio, esteja presente na obra de outros extraordinários artistas brasileiros.

Daniel Senise, Laís Myrrha e Leonilson enfrentaram essa imagem, que parece estalar no nosso repertório social como o leitfossil (fóssil em brasa) de Aby Warburg. Didi-Huberman¹⁰ visita o pensamento do crítico e historiador alemão e analisa o termo: para ele, ao mesmo tempo que o fóssil em brasa é algo que parece vir de muito, muito longe, como uma espécie de múmia, ele também segue quente, em estado de movimento e transformação, e por isso segue reincidente nas representações de um determinado grupo. Ao ser revisitado, demonstra sua capacidade em ser uma “imagem sobrevivente”. Em um Brasil que ainda tem traços escravocratas, o pódio vazio é uma imagem-fantasma que nos fala não apenas deste passado-presente de exclusão, mas também da era das redes sociais, com a superexposição e a autoexploração, inerentes do capitalismo cognitivo. Competimos e nos comparamos 24 horas por dia, e no fim da jornada ninguém vence.

“Água ou suco? Amendoim ou cookies, senhora?”


Do que me alimento para escrever?


Desejo mesmo voltar ao texto, o de antes?


Ou será que é possível fazer com ele o mesmo que Setúbal fez com peça central da exposição, uma alegoria da estátua equestre de Dom Pedro I? Dá para virar a escrita de ponta-cabeça e sustentá-la fragilmente pelo fio da espada, como os corpos ficcionais do imperador e seu cavalo na obra do artista?
Construída a partir dos saberes dos barracões das escolas de samba, a escultura criada para “Monumental” usou como modelo não apenas a da Praça Tiradentes, que mostra Pedro brandindo a Constituição, mas o monarca imaginado por Pedro Américo, em pintura que faz parte do acervo do Museu do Ipiranga, em São Paulo. Depois que a peça ficou pronta, optamos por sua destruição: esquartejamos Dom Pedro com a cumplicidade do público e da equipe do museu, e doamos seus despojos para que eles possam nutrir a criatividade dos artistas do Ateliê Gaia.¹¹
O retalhamento de Dom Pedro revelou a estrutura de ferro e isopor, mas também as vísceras da imagem. E o mais importante que uma imagem pode carregar em seu ventre são outras imagens, espelhos turvos da imagem que ela é. O primeiro gêmeo não idêntico do monarca aos pedaços é um trabalho homônimo do próprio Setúbal presente na exposição. No vídeo “Monumental”, em dois canais, o artista apresenta em uma das telas o processo de fundição de estátuas, e na outra reúne uma coletânea de vídeos alheios, que mostram monumentos dedicados a escravocratas e colonizadores sendo derrubados ao redor do mundo. Ciclos. Ouroboros.
Não me parece acaso que justamente a imagem de Dom Pedro tenha sido revisitada tantas vezes nos últimos tempos, por importantes artistas contemporâneos do país. Diambe da Silva realizou a fotoperformance “Devolta” (2020), em que sitiava o monumento a Dom Pedro da Praça Tiradentes com um círculo de fogo. Asfixiar a imagem original, sequestrar seu poder; impedir o resgate a partir da fotografia que registra a proposição artística, gerando nova imagem, que se alimenta do fogo que chamusca a imagem canônica, o signo hegemônico.¹²

É também instigante pensar na representação de Dom Pedro no desfile campeão “Histórias pra ninar gente grande” (2019), da Estação Primeira de Mangueira, cujo enredo e concepção plástica têm a assinatura de Leandro Vieira. O artista inverte a lógica dos livros de História oficial, dando estatura de monumento a heróis populares invisibilizados e esquecidos (como o jangadeiro Dragão do Mar ou a líder Luísa Mahin).
No fluxo inverso, transformou as imagens monumentais de “grandes vultos” - imperadores, padres e generais¹³ - em caricaturas, infiltrando com a instabilidade do humor a leitura absoluta dessas figuras históricas. Em uma das fantasias do cortejo, Dom Pedro I aparece montado num burrico, que lembra os “cavalinhos de pau” da infância e denuncia com alegria e leveza a farsa da Independência.
Jeanne Marie Gagnebin fala da importância de retomar determinadas narrativas “do passado” para melhor elaboração dos processos históricos e, mais do que isso, para subversão da realidade que nos atravessa. “A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente”,¹⁴ escreve a autora. Por tudo isso, repisar, esquartejar ou botar em xeque a imagem de Dom Pedro I me parece algo muito mais profundo do que uma anticomemoração do bicentenário da Independência, cujo marco se deu em 2022.

No diálogo entre Paul Setúbal e Arthur Bispo do Rosario, e na roda de outros artistas que habitaram essa minha odisseia textual, a fissura do monumental responde politicamente aos acontecimentos de um Brasil recente. A eleição de Bolsonaro está profundamente conectada às consequências deixadas pela invasão portuguesa de nosso território, e ao fato de que este país foi formado e povoado a partir da expropriação e do estupro.
Há digitais simbólicas da casa imperial dos Bragança nas obras de arte mutiladas no Palácio do Planalto em 2023, e voltar a sentir essa dor é uma forma de escarnecer dela a partir daquilo que podemos ficcionalizar. Não esquecer da ferida e vestir a memória com a pele do que podemos imaginar; conferir a nós mesmos o poder de rir de quem nos feriu; remodelar e violentar os rastros de nosso agressor para vencê-lo em uma dobra do tempo.
A telinha da poltrona à frente sai do ar, e o piloto avisa que em breve chegaremos ao Aeroporto Santos Dumont.


Pousei.


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Dedico esse texto à amiga Paula de Oliveira Camargo, arquiteta e - espero que ela saiba disso - escritora. A leitura do texto de Paula para este catálogo me levou ao estilhaçamento e à recostura do meu. Plantando bananeira com as palavras que deixei aqui, mencionono fim a gratidão que existe desde o princípio.

Daniela Name

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1 O dragão dos Bragança é precisamente uma serpe, uma serpente com asas. Mas convencionou-se chamar de dragão todo o grupo de animais assemelhados, com asas, escamas e cauda. Prova disso são os “Dragões da Independência”, derivados dessa iconografia imperial.

2 As narrativas sobre libélulas e dragões são especialmente fortes nos povos originários da América do Norte. Libélula, em inglês, é “dragonfly”.
3 Minhas férias começaram em Brasília, para onde fui prestigiar a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 1 de janeiro de 2023. Depois fui para Pirenópolis e meu voo de volta para casa, do qual de fato vi a depredação do Distrito Federal, partiu de Goiânia.
4 Os textos de Paula Oliveira Camargo e Thiago Fernandes neste catálogo discorrem mais especificamente sobre a estátua equestre em homenagem a Dom Pedro I, na Praça Tiradentes, Centro do Rio.

5 HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil . São Paulo: Companhia das Letras, 2014 (1936).
6 LEVITSKY, Steven, ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
7 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro . São Paulo: Companhiadas Letras, 2019.
8 Obviamente a chegada de Bolsonaro, seus filhos e seus aliados ao poder tem razões mais desdobradas e complexas, que eu não poderia desenvolver neste ensaio. Destaco, no entanto, a importância do totalitarismo religioso e da manipulação neopentecostal da imagem de Jesus Cristo e das narrativas evangélicas na formulação do modelo excludente que forjou o bolsonarismo.

9 NIETZSCHE, Friedrich. Werke. Leipzig: Alfred Köner Verlag, s.d., apud HOLANDA, op.cit.

10 DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente - História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013 (2002).

11 O Ateliê Gaia tem como clientes os artistas do inconsciente atendidos pelas oficinas de arte e o trabalho de terapia ocupacional desenvolvido pelo Museu Bispo do Rosario em parceria com o SUS.

12 É importante enfatizar que a obra de Diambe não vandaliza a estátua e nem comete qualquer ilegalidade. O interesse da artista é sitiar a imagem, depredar o monumento erguido em nossa memória, e não o real, instalado na praça.

13 O pesquisador Frederico Pellachin, meu companheiro no voo que permeia esse texto, escreveu comigo o artigo “Caxias despedaçado e histórias em disputa", publicado na Revista Caju (Disponível no link: encr.pw/wq5ti). Tenho me dedicado a investigar geração de artistas do carnaval à qual pertence Leandro Vieira, um grupo de artistas que chamo de “narradores”. Eles têm sido capazes de gerar imagens sobreviventes à efemeridade dos desfiles, a partir de proposições de enredo que recuperam esse quesito como o centro irradiador, e necessariamente profundo e complexo, de toda a concepção multilinguagem dos cortejos (Artigo “Uma geração de narradores”, na Revista Caju, disponível no link: encr.pw/c1VcM).
14 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.

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