A imagem do sertanejo, com sua cultura e tradição, há muito é difundida pelos mais diversos gêneros discursivos. Com costumes e especificidades distintos em cada região do país, a vida do pastoreio, suas vestimentas, conferiram a essa figura alguns traços tão marcantes quanto a sina de ver-se associados a uma massa de trabalhadores exilados da própria terra e de sua subsistência. Isolados ou fora do alcance do poder do Estado, muitas vezes vítimas de seu aparato policial, o sertanejo foi repetidamente narrado como um andarilho ansiando por transformação, oportunidade e justiça. A gênese do sertanejo confunde-se assim com a formação histórica da sociedade brasileira, marcada, entre outros aspectos, por conflitos violentos vinculados à posse da terra e à expansão e integração do território nacional.
A cultura da criação do gado, intrinsecamente vinculada à figura do sertanejo, nasceu de um avanço gradativo das pastagens no interior do continente. A bovinocultura, que originalmente funcionava como provedora de carne e couro aos canaviais, foi se afastando dos engenhos e encontrou a vastidão dos pastos naturais no interior do Brasil. O Centro-Oeste foi um de seus destinos. Majoritariamente formada pela migração, a região teve na miscigenação com os indígenas locais a síntese de seu sertanejo. O artista goiano Paul Setúbal, em “Bronze, Couro, Ouro, sangue”, remonta a essa síntese marcada pela violência e pela dominação como um traço mordaz da sociedade brasileira.
A enumeração que dá corpo ao título não é nada fortuita. Há na escolha explícita desses materiais as pistas não só de processos elaborados de fundição, modelagem, desenho, costura e confecção das peças, mas também de índices da formação histórica de uma região que mescla curtas promessas de um desenvolvimentismo a um abandono continuado de uma expressiva camada de sua população. Setúbal, por intermédio da história da violência que acomete o sertanejo e traços de sua cultura, remonta parte de uma contra-história do progresso do Centro-Oeste brasileiro. Recorrentemente lido como um território de passagem, seu presente ainda pouco reflete as ambições de crescimento e interiorização expressas na construção de Brasília e diluídas pela pecuária extensiva e o modelo latifundiário de produção de commodities.
Setúbal denuncia as contradições regionais em o Conto da Roça (2020), discutindo uma invasão de terras no interior de Goiás após sua desapropriação ilegal. O episódio é narrado por um pistoleiro que, auxiliado por um grupo armado, planejou expulsar trabalhadores que viviam pacificamente no local, mas foi surpreendido por uma tocaia que terminou em perseguição e troca de tiros. O vídeo evidencia a disputa entre camadas populares pela posse de terras, com planos sucessivos de armas e uma constante apologia à bravura, à honra e à ideia de que a morte do outro possa ser uma forma de atenuar um histórico de injustiças sociais. Trata-se da imagem do sertanejo que encontrou no banditismo uma resposta: a virilidade amparada pela arma e a defesa da propriedade adquirida por meios ilegais como um falso restabelecimento da ordem.
Há nesse quadro da psique do sertanejo, que encontrou no banditismo uma saída, uma ilogicidade inerente, certa inversão de valores, que não se resume às ideias de brutalidade e selvageria consagradas na literatura e cinema nacionais. A arma empunhada como um trunfo permeia muito da noção de força física e masculinidade atrelada ao sertanejo. Esse senso de honra e bravura será a justificativa recorrente que lavará de sangue àquele que se contrapor. Em Sinapses (2015 - 2020), Setúbal mescla, numa alegoria do pensamento, referências usualmente encontradas em manuais de armas de fogo, relógios e traquitanas, como se fosse possível extrair da representação isométrica, a lógica dos aparelhos ideológicos e repressivos. A referência clara aos consagrados estudos davincianos do Renascimento parece nos furtar brevemente da natureza dos materiais e do gotejamento inconfundível das marcas que pontuam toda a tela. Setúbal nos faz, momentaneamente, ver beleza nessa ideologia do extermínio. Nos prega essa peça, para logo desconstruí-la.
Em um ensaio dedicado à gênese dos jagunços na literatura, o sociólogo e crítico Antônio Candido afirma que o “valentão armado atuando isoladamente ou em bando é um fenômeno geral em todas as áreas onde a pressão da lei não se faz sentir, e onde a ordem privada desempenha funções que, em princípio, caberiam ao poder público”2. Essa justiça feita com as próprias mãos é parte fundamental dos questionamentos expressos nos diversos trabalhos em que Setúbal articula aparatos policiais a marcas indeléveis da força impressa no bronze fundido. As faces da violência sistêmica e, muitas vezes institucionalizada, são exploradas pelo artista numa égide de signos apropriados pelas mais diferentes corporações, das milícias à cavalaria imperial. A grande peleja (2019) é uma síntese de temporalidades distintas na formação da força militar no país. Setúbal realiza uma réplica do capacete da Imperial Guarda de Honra (1822), criada por Dom Pedro I e recriada posteriormente com a alcunha de Dragões da Independência (1946), ainda hoje responsáveis pela segurança do Presidente da República. A peça substitui o dragão original pela figura de um São Jorge aniquilando com sua lança a besta colonial responsável por uma das violências fundadoras, que continua a assombrar nossos cotidianos.
Ademais, a maneira com que Setúbal articula elementos de proveniências mais distintas na construção da sua iconografia sertaneja surpreende pela transversalidade histórica. Ao desavisados, a série Pesares (2020) remete à imagem de um pelotão que guarda falsas relíquias no centro da sala expositiva. Os paramentos de couro de boi, primorosamente cortados pelo artista a partir de moldes de alfaiataria, somam-se a boinas, quepes militares e a alguns itens apropriados de fantasias de carnaval. Setúbal transita entre a alta cultura e o folclore popular, o militarismo e artigos sexuais, com passagem por mitos cristãos, excertos de pinturas de Johann Moritz Rugendas e contos populares.
Para quem adentra à sala, esses corpos que testam os limites da gravidade e dos materiais, com um misto de insustentável leveza, parecem aguardar o instante do aboio, o canto dolente do berrante que promove o lento deslocamento da boiada. A configuração dos corpos e, mais ainda, a ausência deles é uma clara metáfora de uma andança histórica que parece estar dubiamente em trânsito, mas inerte. Uma inércia que ainda no presente admite a violência e o extermínio como forças estruturantes na formação de uma sociedade e que se enraizaram com equívoca e incontestável naturalidade.
¹ RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2000
² CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3a ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 146
Priscyla Gomes - Casa Triângulo, São Paulo, 2021
Bronze, Couro, Ouro, sangue
"(…) seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor [...], quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, mulheres, crianças convertidos em pasto de nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é levar conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. É ela que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira" — Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro. [1]