Trono sem Rei - C Galeria, Rio de Janeiro, 2022
Moacir dos Anjos
São de difícil classificação as obras reunidas na exposição Trono Sem Rei. Por serem, quase todas, peças metálicas em relevo, evocam, de imediato, categorias legitimadas como objeto ou escultura. Ao olhar interessado, contudo, aparentam-se igualmente com formas artísticas quase planas, como colagem ou pintura. Talvez sejam, ao mesmo tempo, uns e também as outras, trabalhos de natureza ambígua que evocam, na sua materialidade atraente e nos muitos símbolos neles atados, paradoxos históricos e políticos do Brasil de antes que persistem ainda no de agora.
Nas duas peças que dão nome à mostra, Paul Setúbal aproxima simulacros dourados de objetos pertencentes a tempos distintos: na primeira, um fragmento do trono do Imperador Pedro II e um pedaço de urna eletrônica usada em eleições recentes; na segunda, partes do trono do senado imperial brasileiro e, outra vez, de equipamento contemporâneo usado para contabilizar votos digitalmente. Reproduções partidas de artefatos díspares associadas do modo mais improvável pelo artista. São réplicas reluzentes de coisas separadas por mais de um século que convergem, contudo, nas alusões que fazem ao exercício do poder: os assentos de quem detinha a faculdade de mando individual no passado e a ferramenta para a escolha coletiva de governantes no presente.
O fato de os objetos parecerem estar meio arruinados, sendo também aparentes as marcas de sua inatural articulação – cicatrizes de uma impossível sutura simbólica –, fazem lembrar que política é expressão de disputas, não de apaziguamento de contrários. Recordam, também, que os distanciamentos históricos por vezes se embaralham e convergem em um único momento. Há coisas, afinal, que parecem não mudar nunca. Como o fato de a ocupação de um trono (ou outro assento qualquer de poder) ser sempre desafiada por métodos acordados socialmente. Por vezes, como no passado do Brasil, somente pela força imposta; em outras ocasiões, como na história recente do país, através do voto universal e livre. A aproximação material entre as duas situações expressa, no campo do sensível, a miséria política de agora. Que não é inevitável, mas que requer vontade de resistência para refutá-la. Não à toa, as duas peças de nome idêntico exibem também fragmentos metálicos de cópia de conhecida imagem na qual São Jorge combate um dragão. Igualmente amalgamados com as demais reproduções, são indícios de que entre o trono e o voto há espaço para uma luta tão urgente quanto sem fim certo.
Há também, na exposição, o que Paul Setúbal chama de estandartes. Assim como bandeiras, estandartes são objetos que, usualmente feitos de tecido, exprimem em símbolos e formas desejos de uma coletividade – uma agremiação, uma cidade, gentes que partilham formas singulares de vida. Ou que ao menos acreditam partilhá-las. São artefatos que celebram feitos passados ou expressam aspirações ainda não alcançadas; que expressam diferenças diante do outro. Os quatro estandartes que o artista constrói, contudo, não são feitos de tecido, mas de bronze esculpido. Sua rigidez e peso causam estranhamento a quem espera maleabilidade e leveza desses objetos, embora permitam calmo escrutínio do que exprimem. Em cada um deles, reconhecem-se fragmentos de símbolos de Estado, como o brasão da República do Brasil. Avizinhados a eles, identificam-se também reproduções parciais de armas de fogo, coldres, facas. Índices da violência que irrompe sempre que os acordos e convenções que permitem a expressão pacífica de disputas são ignorados ou desfeitos. São estandartes duros que parecem, porém, expressar uma dinâmica social entrópica, em que o esfacelamento ou desfazimento do que é do âmbito do comum parece estar em curso. Comum que, talvez, jamais tenha se constituído inteiramente em país fundado na violência colonial. São peças que também parecem ser feitas a partir de moldes de costura que se combinam de modo inútil, posto que suas superfícies duras e cortantes não servem para vestir. Aparentam mais engrenagens articuladas de máquinas falhadas, em que fechaduras sem chaves se insinuam como saídas para lugar que ainda não existe. São estandartes que exibem uma heráldica brutal e truncada que se faz ainda mais evidente nos trabalhos da série Perfurantes, na qual pedaços metálicos da bandeira nacional se confundem com um alvo de tiro e estão sujeitos à predação institucional.
Se há um tom pessimista nesse conjunto de trabalhos de Paul Setúbal – espécie de sintético resumo sensível da história de imposição violenta do poder no Brasil –, existe em alguns deles, todavia, espaço para afirmar resistência e possibilidade de mudança. Se, nas pinturas da série Contritos, esse ímpeto se apresenta como forma fluida e movente pintada sobre superfície flexível de pano, nos objetos da série Lusco-Fusco ele se impõe de maneira mais decidida. Neles, uma mesma superfície abriga, ao fundo, uma figura opaca feita de latão que lembra a imagem desfocada do rosto de alguém em posição de alerta. Já no primeiro plano de cada um dos trabalhos, salta à vista a imagem nítida de uma flecha ou lança feita de bronze – instrumentos que expressam, ao longo da história, engenho para inventar formas de vida e para resistir a mecanismos de extermínio. Engenho que permite a invenção das peças aqui reunidas e que invoca a arte como espaço de permanente luta.